Infância sob ameaça: especialistas alertam para os efeitos da hiperconexão, da violência sexual e do acolhimento institucional no XVIII Fonajup
Programação desta quinta-feira reuniu Daniel Becker, Luciana Temer e Juliana Maria Fernandes em reflexões potentes sobre os desafios contemporâneos à proteção integral de crianças e adolescentes
O segundo dia do XVIII Fórum Nacional da Justiça Protetiva (Fonajup), realizado em Belo Horizonte nesta quinta-feira (15), foi marcado por debates profundos sobre os desafios contemporâneos à infância e juventude. A programação da manhã reuniu especialistas e magistrados em torno de dois temas centrais: os impactos das mídias sociais no desenvolvimento infantil e os direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes. À tarde, o evento deu continuidade aos trabalhos com a apresentação da proposta de atualização do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária.
No primeiro painel da manhã, com tema “Mídias sociais e a reconfiguração da infância”, o pediatra e ativista Daniel Becker fez um alerta contundente sobre o uso precoce e excessivo de telas. O debate foi coordenado pelo juiz Daniel Konder de Almeida, presidente do Fonajup, com participação dos juízes José Roberto Poiane (TJMG), Ricardo Rodrigues de Lima (TJMG) e da juíza Vanessa Cavalieri.
Becker abordou as múltiplas transformações que têm afetado a infância: sedentarismo, perda de vínculos familiares, aumento da ansiedade, violência simbólica e adultização precoce. “Estamos vivendo um experimento global massivo, afastando as crianças dos elementos essenciais da evolução humana”, alertou. “Elas não dormem bem, não se movimentam, não brincam, não enfrentam riscos saudáveis. Estão sendo moldadas por uma lógica de consumo e estímulo digital que fragmenta atenção e destrói autoestima”.
O palestrante destacou que 97% das crianças brasileiras já usam smartphones para acessar a internet — muitas a partir dos dois anos de idade — e adolescentes chegam a ficar, em média, 8 a 9 horas por dia conectados. Para ele, o problema não está na tecnologia em si, mas na exposição precoce e desregulada a conteúdos nocivos: “O que queremos é proteger as crianças de aplicativos tóxicos que viciam, desinformam e violentam”.
Ao final, Becker defendeu a ampliação de políticas públicas de primeira infância, o banimento de celulares nas escolas e o incentivo à brincadeira, natureza e vínculos familiares como forma de reconectar a infância à sua essência. “A infância continua durando só 12 anos. É lá que mora a semente de uma vida mais leve e feliz. Precisamos agir agora”.
Direitos sexuais e reprodutivos em tempos de polarização
O segundo painel da manhã abordou o tema “Direitos Sexuais e Reprodutivos de Crianças e Adolescentes”, com foco na Resolução nº 258/2025 do Conanda. A mesa foi coordenada pela juíza Conceição Aparecida Canho Sampaio Gabardo (TJRS), com palestra da advogada Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, mediação da juíza Juliana Galvão Martins (TJSE) e debate com a juíza Lorena Boccia (TJRJ).
Luciana Temer trouxe dados alarmantes: “Em 2023, foram registrados 48.511 estupros de crianças menores de 13 anos no Brasil. Isso representa cinco estupros por hora — e ainda assim, é subnotificado”. Segundo ela, a Resolução nº 258 não cria novos direitos, mas operacionaliza garantias já previstas no ECA. “Ela assegura que a criança tenha acesso à informação de forma adequada à sua idade. Estamos falando de proteger e não de estimular comportamentos”, frisou.
A juíza Lorena Boccia, por sua vez, reconheceu os avanços da resolução, mas pontuou que “a proteção à criança precisa ser pensada à luz do ordenamento jurídico”. Ela defendeu ajustes na redação para evitar possíveis interpretações equivocadas sobre a capacidade de decisão das crianças, especialmente em situações complexas envolvendo saúde e sexualidade.
Novo Plano de Convivência
À tarde, a gerente de Projetos da Secretaria Nacional de Assistência Social, Juliana Maria Fernandes Pereira, apresentou a proposta de atualização do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, submetida ao Conanda e ao CNAS, e atualmente em consulta pública.
Segundo Juliana, a revisão do plano é fruto de um amplo processo participativo que envolveu governo, sociedade civil e instituições do sistema de justiça, como CNJ, CNMP, CONDEGE, magistrados, promotores e equipes interprofissionais. “Esses espaços onde as pessoas podem dialogar com o sistema de justiça são fundamentais para a proteção do direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária”, afirmou.
Entre os pontos centrais da proposta estão o fortalecimento do apoio às famílias, a identificação precoce de situações de risco, a qualificação dos serviços de acolhimento e a transição do modelo institucional para a modalidade de família acolhedora. Juliana lembrou que apenas 7% das crianças acolhidas no Brasil vivem atualmente em famílias acolhedoras, o que exige um esforço coordenado para ampliar essa política.
A gestora também destacou a necessidade de melhorar o sistema de adoção, sobretudo para crianças mais velhas, com deficiência, com problemas de saúde ou que fazem parte de grupos de irmãos, além da inclusão inédita de medidas voltadas aos jovens egressos do acolhimento. “Ao completarem 18 anos, muitos jovens saem do sistema sem qualquer apoio. Precisamos de uma política estruturada para acompanhar essa transição à vida adulta”, concluiu.
A expectativa é que o novo Plano seja aprovado ainda este ano, consolidando uma agenda mais eficaz e inclusiva de proteção à infância no Brasil.