Seminário relembra trajetória do Depoimento Especial
Em 2018, uma jovem esperava o Desembargador do TJRS José Antônio Daltoé Cezar em seu gabinete. Ela iria fazer o seu Trabalho de Conclusão de Curso sobre o Depoimento Especial, metodologia criada por ele, em 2003, para ouvir de forma humanizada e segura crianças e adolescentes vítimas de crimes sexuais. Mas o motivo não era apenas esse. A estudante foi uma das muitas vítimas que Daltoé ouviu nos últimos 18 anos. Ela tinha apenas 10 anos e havia sido abusada por um tio.
“Foi uma coisa muito importante porque ela conseguiu se fundar enquanto sujeito de direito”, afirmou o Desembargador, emocionado, ao falar do gesto corajoso da menina ao confirmar o crime sofrido. O caso foi trazido à tona na manhã de hoje, durante a VII Semana do Depoimento Especial, promovida pela Coordenadoria da Infância e Juventude do RS (CIJRS).
Marco
Quatro mil profissionais capacitados no Brasil, mais de 1 mil equipamentos instalados e, só em 2019, 15 mil depoimentos realizados. Ao completar 18 anos de existência, o Depoimento Especial, metodologia que se tornou lei nacional, atinge importantes feitos no combate aos crimes sexuais contra crianças e adolescentes de todo o país. O evento virtual iniciado hoje relembrou a trajetória até a sua implementação efetiva como sistema de escuta protegida.
O encontro é conduzido pela Corregedora-geral da Justiça, Desembargadora Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak, e pela titular da CIJRS, Juíza-corregedora Nara Saraiva. Ele segue amanhã, podendo ser acessado pelo link https://www.youtube.com/watch?v=Mx80c5-tvA4
Início
Em 2003, o Desembargador do TJRS, José Antônio Daltoé Cezar, era Juiz de Direito no 2° JIJ de POA, quando deu início à sistemática que primava pela escuta protegida das crianças e dos adolescentes vítimas de crimes sexuais.
Ele lembrou que não havia passado por capacitação ou mesmo abordagem sobre o assunto ao longo do curso do Direito nem na preparação para a magistratura. “Assumi como Juiz de Direito em 1988 e nunca me fizeram uma pergunta sobre isso. Assumi em Santa Maria e, já na primeira semana, precisei ouvir uma criança. E nunca ninguém tinha falado sobre isso”.
Ele contou que ouviu muitas perguntas inapropriadas feitas para as vítimas, na frente de outras pessoas. “Foi então que, depois de muitas experiências nesse sentido, uma criança que sofreu violência de um menor infrator não conseguiu falar e ele não foi responsabilizado. Ali eu disse que não ouviria mais os depoimentos dessa forma”, lembra.
Na época, o Desembargador do TJRS João Barcelos de Souza Junior era Promotor de Justiça no 2° JIJ da Capital. Juntos, eles adquiriram uma câmera e improvisaram uma sala para que as vítimas fossem ouvidas em separado por profissionais capacitados para isso.
“Quando entrou o DE, não existiam muitos relatos. A maior parte deles era ou a negativa ou o silêncio pela falta de estrutura. A partir do DE, passamos a ter relatos de uma maneira mais tranquila daquilo que infelizmente acontecia. Para mim, foi um choque muito grande. Alguns depoimentos foram uma surpresa muito grande daquilo que acontecia”, relembrou o Desembargador João Barcelos.
O magistrado também acompanhou a dificuldade e a resistência encontradas para implantar o mecanismo inédito. “Há situações gravíssimas, envolvendo uma sociedade fechada. Há uma tendência de querer colocar as coisas para baixo do tapete. E o DE traz relatos de uma forma muito transparente, onde é difícil contestar”.
“O depoimento mostra coisas chocantes que não são simplesmente o próprio abuso. Revela o estrago que o abuso causa em uma criança”, afirmou Barcelos ao relembrar um depoimento chocante qu ew presenciou, em que uma jovem de 14 anos negou o crime sofrido.
A Procuradora de Justiça Veleda Dobke é autora do livro que inspirou a criação do DE. Ela relembrou as dificuldades de ouvir as vítimas, quando ainda era Promotora de Justiça. Em 1998 ela fez um estudo aprofundado sobre o tema, através do qual concluiu que os conhecimentos técnicos do direito não eram suficientes para ouvir adequadamente as vítimas. “Um trabalho multidisciplinar era necessário. Muitos juízes já se preocupavam com a questão. Mas foi o Desembargador Daltoé quem teve coragem, determinação e humildade para dar o primeiro passo”. Veleda foi convidada para acompanhar a primeira audiência de DE. “Todos estão de parabéns. Daltoé será lembrado pela coragem e por não ter desistido nunca. Obrigada por permitir compartilhar este momento único”.
Parceria internacional
Em 2007, a Childhood, OSCIP internacional voltada para o combate à violência sexual contra crianças e adolescentes, fundada pela Rainha Silvia da Suécia, se tornou parceira para fortalecer a rede brasileira de proteção.
A Rainha enviou uma mensagem para os participantes do evento. “É uma satisfação conversar com pessoas engajadas. Isso enche o meu coração de esperança” , afirmou. Num breve balanço de resultados da parceria da Childhood Brasil, destacou a publicação de estudos e a formatação do protocolo brasileiro de entrevista forense.
Rainha Silvia também participou do evento Créditos: Janine Souza
“Sabemos que muitas crianças nunca revelarão os abusos sofridos. Em geral, elas se sentem culpadas e inseguras, em caso de revelação. É importante que os países caminhem firmes, criando mecanismos que asseguram ser ouvidos em todo o processo judicial e administrativo a eles atinentes”, reforçou ela.
A Rainha destacou que a entidade deverá focar nos municípios para implementação da escuta protegida. “Neste mês estamos enviando a todos os municípios um guia para implementação da lei. É um desafio para preparação à efetivação da lei. Mas está claro que é possível, conforme o trabalho demonstrado pelo TJRS”,afirmou.
O Gerente de Advocacy da Childhood Brasil, Itamar Batista Gonçalves, revelou que a entidade fez levantamentos e pesquisas e que se deparou com três grandes gargalos: “Falta de uma política de estado de prevenção, falta de integração dos serviços de proteção e baixos índices de responsabilização perpetuando o ciclo de impunidade”.
Segundo ele, mais de 70% dos abusos sexuais de crianças e adolescentes acontecem no âmbito familiar. E em 51% dos casos, as vítimas têm entre 1 a 5 anos (dados de 2018).
Para tentar fazer frente a essa triste realidade, a Childhood vem investindo nos últimos anos na disseminação do Depoimento Especial. “Os resultados foram muito significativos, com a realização de cursos e formação de protocolo brasileiro de entrevista forense.
Esses resultados geram impacto, elevação dos índices de responsabilização”, avalia Gonçalves.
Para o representante da OSCIP, o grande desafio é fortalecer os municípios tecnicamente, além da criação de centros integrados para prestação dos serviços. “Após quase 31 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, temos o desafio de uma politica de estado para prevenir a violência contra crianças e adolescentes”.
Lei Nacional
Até que o Depoimento Especial se tornasse lei, em 2017, o caminho foi longo. Essa trajetória foi lembrada pela Deputada Federal Maria do Rosário Nunes, autora do Projeto de Lei que deu origem à Lei 13.431, de 4 de abril de 2017, que precisou ser proposto mais de uma vez para que fosse aprovado.
“Desde os anos 90 estamos nesse caminho. A CPMI denunciou, ouviu vítimas, mas quando ouvíamos, estávamos em revitimização. Vítimas tinham que ser ouvidas tantas e tantas vezes que o medo, a dúvida e as memórias implantadas contribuíam para o processo de culpabilização e de sofrimento delas. Os abusadores acabavam livres”, conta a Parlamentar gaúcha.
“O primeiro PL que ingressamos sofreu um pedido de reanálise e foi engavetado. Precisamos entrar com um novo projeto, construído com a Childhood, IGP/RS, CRAI, UNICEF, CONANDA, magistrados, MP”, frisou.
“Foi quando, no Rio de Janeiro, uma adolescente sofreu um estupro coletivo. Para ela foram feitas as perguntas mais absurdas. Então o PL encontrou um fato na vida do país que mobiliza o país. Não havia um protocolo. Essa matéria hoje é lei, mas sobretudo, um instrumento de vida. As vítimas falam pela nossa voz”,
CNJ
A Conselheira Flávia Moreira Guimarães Pessoa, preside o Fórum Nacional da Infância e Juventude do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e abordou o trabalho que o grupo criado em 2016 vem realizando nessa área. “Hoje estamos trabalhando em um protocolo específico para o DE em comunidades indígenas e quilombolas. Serão lançados planos-pilotos em diversas regiões do país”.
FONTE: imprensa@tjrs.jus.br /Janine Moreira de Souza Assessora-Coordenadora de imprensa: Adriana Arend