20 anos do depoimento especial no Brasil
O ano de 1988 é o da promulgação da nossa atual Constituição Federal que, entre tantos avanços no campo dos direitos humanos, dispôs expressamente em seu artigo 227 que crianças e adolescentes são sujeitos de direito (vida, saúde, educação, alimentação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, convivência familiar e comunitária), cumprindo ao Estado assegurar que sejam cumpridos com absoluta prioridade.
A Convenção sobre os Direitos da Criança foi adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989, tendo sido depois incorporada ao sistema legal brasileiro. Trata-se do instrumento no campo dos direitos humanos mais aceito na história universal. Foi ratificada por 196 países.
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) é do ano de 1990 e veio incorporar de forma mais detalhada os princípios e conceitos que já estavam previstos na Constituição e na Convenção sobre os Direitos da Criança.
E como esses três marcos legais contribuíram para que crianças e adolescentes, sempre que necessário, em juízo ou fora dele, começassem a ter voz própria sobre os seus direitos, sobre os fatos que tivessem conhecimento, sobre suas queixas ou angústias, sem que isso pudesse causar-lhes um dano secundário, decorrente de uma exposição inadequada perante o agente público responsável pelo exercício desse direito?
Inicialmente, é bom lembrar o que dispõe o artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança:
– Os estados-partes devem assegurar à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da idade e da maturidade da criança.
– Para tanto, a criança deve ter a oportunidade de ser ouvida em todos os processos judiciais e administrativos que a afetem, seja diretamente, seja através de um representante ou de um órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional.
Para dar efetividade a esse dispositivo legal, ainda que a legislação brasileira ainda não tivesse norma específica a respeito, no ano de 2003, no Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, foi feita a primeira audiência na qual uma criança vítima de violência sexual, supostamente praticada por um adolescente, foi ouvida a respeito não da forma tradicional — dentro da sala de audiências, com a presença física do magistrado, Ministério Público, advogado, servidores, etc. Mas por meio de um sistema de vídeo e áudio, estando ela em outra sala acompanhada apenas de uma psicóloga, que se preparou para aquele momento processual (estudou o processo), sendo a fala presenciada e ouvida por todos os operadores do direito que deveriam participar daquele ato processual, sendo a eles permitido interagir, para que também os princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa fossem observados.
A partir daquele ano, tendo outras audiências nos mesmos moldes sido feitas, e verificado que o novo modelo atenderia o disposto no artigo 12 da Convenção sobre os Diretos da Criança, já em 2004 a Corregedoria-Geral do TJ-RS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul) determinou que equipamentos para esse novo tipo de escuta fossem instalados em outras nove cidades do estado, distribuídas regionalmente, para que os magistrados que assim o desejassem, pudessem fazer as audiências nessa forma.
A partir daí essa nova forma de escuta ganhou contorno nacional, sendo que, em 2007, a Childhood Fundation, organização não-governamental criada pela rainha Sílvia da Suécia, passou a desenvolver trabalho no sentido de, verificando metodologias em outros países, criar um protocolo científico para escuta de crianças e adolescentes em juízo ou na fase policial, o chamado depoimento especial.
Em 2010, foi a vez do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) incorporar-se a esse grupo de trabalho, editando a Recomendação nº 33, no sentido de que todos os Tribunais de Justiça do país passassem a disponibilizar equipamento e capacitar profissionais para as audiências em que crianças e adolescentes tivessem que ser ouvidos.
Em 2017, a Lei nº 13.431, de autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS), normatizou as situações e a forma como crianças e adolescentes devem ser ouvidos pelos agentes públicos que devem zelar pelos seus direitos, tendo em 2019 o CN editado a Resolução nº 299, que normatizou, no âmbito do Poder Judiciário, como prevenir a violência institucional, e orientou, entre outras práticas a serem observadas, articulações para implantação das salas de depoimento especial em todas as comarcas, assim como capacitação de profissionais para a realização desse trabalho.
Já em 2022, novamente o CNJ, buscando dar plena efetividade à Lei 13.431/2017, lançou um manual para depoimentos especiais nas comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, ciganos, povos ribeirinhos, etc), com o escopo de atender os contornos interculturais que vierem a ser identificados nessas populações, assim contemplando as especificidades linguísticas e socioculturais.
Ainda em 2022, em razão da edição da Lei nº 14.344 (Lei Henrique Borel), que introduziu a obrigatoriedade do depoimento especial da criança ou adolescente nas demandas voltadas à definição de guarda em que se discuta alienação parental, o CNJ, por determinação de sua presidente, a ministra Rosa Weber, editou a portaria nº 359/2022, criando um grupo de trabalho para criar diretrizes que venham a orientar um protocolo de escuta de crianças e adolescentes nos processos de família, o qual tem o prazo até o mês de outubro para finalizar a proposta.
Esse grupo de trabalho é composto por profissionais do maior reconhecimento profissional nessa área de atuação em todo Brasil. É coordenado pela ministra Nancy Andrighi, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), e teve como uma das suas primeiras tarefas fazer o levantamento de quais recursos físicos e profissionais o Poder Judiciário, em todos os estados, já dispõe para a nova tarefa que a legislação determina ser obrigatória. Ainda que incompleto, esse serviço, já colocado à disposição da população, cresceu nos últimos anos.
Realizadas as consultas necessárias, foram obtidas as seguintes informações:
- Todas as 27 unidades da federação possuem salas de depoimento especial instaladas, sendo elas, atualmente, no total de 557;
- Todas as unidades da federação possuem técnicos capacitados para realizar o depoimento especial, sendo eles, atualmente, 4.379, parte integrante dos quadros funcionais dos Tribunais de Justiça, e parte de setores que colaboram ou são contratados para trabalharem nos depoimentos especiais;
- Apenas 19 unidades da federação contabilizaram o número de depoimentos especiais realizados em 2022, tendo ele alcançado o número de 28.309. Oito unidades da federação ainda não contabilizam o número de depoimentos especiais realizados a cada ano;
- A maior parte das unidades da federação não faz uma separação dos depoimentos especiais prestados por área de especificidade, mas o Rio Grande do Sul realiza essa separação, o que pode ser uma amostragem bem significativa para todo o Brasil. No RS, 83% dos depoimentos especiais situaram-se na área criminal (quase que a totalidade de vítimas de violência sexual), 13% dos depoimentos foram em processos da infância e juventude (também quase que a totalidade em processos atribuídos a adolescentes a prática de violência sexual contra crianças e adolescentes), e apenas 4% foram depoimentos prestados nas área cível e de família;
- Também a maior parte das unidades da federação não faz uma pesquisa qualitativa sobre quem prestou esses depoimentos, e como essas pessoas se sentiram após serem ouvidas. Algumas informações a respeito, com base nos dados do RS, podem servir como amostragem para as demais unidades da federação; a) 84% das vítimas de violência ouvidas são do sexo feminino; b) 96% dos acusados de violência são do sexo masculino; c) 78,59% confirmou a violência objeto do depoimento realizado; d) 66,68% dos depoentes disseram ser importante aquele momento, 28,95% se mostraram indiferentes, e 0,87% não considerou o momento importante, porque acredita que nada ocorrerá com o agressor.
As informações sobre cada unidade da federação podem ser acessadas aqui
As informações qualitativas do Rio Grande do Sul podem ser acessadas aqui
Como me referi ao início, existe ainda muito trabalho a ser feito, mas a comparação de como crianças e adolescentes eram vistos pelas normas legais antes de 1988, e como o são agora, mostra o quanto se evoluiu.
Crianças e adolescentes ganharam visibilidade, existem para a sociedade e para o poder público, e passaram a ser vistos como pessoas, como sujeitos de direito.
Ninguém festeja que no ano de 2022, em 19 unidades da federação, 28.309 crianças/adolescentes tenham sido ouvidas em juízo —, mais de 95% delas como testemunhas ou vítimas de violência, principalmente sexual (com denúncia/representação já oferecidas). Mas que antes de 2003, certamente, a dimensão desse problema não era menor. Simplesmente não aparecia.
Agora, com a escuta de crianças e adolescentes nos processos de família, nova etapa desse trabalho de respeito aos direitos humanos se desenvolverá, tomara que a contento, para que assim nosso país continue um caminho buscando mais igualdade e respeito entre todas as pessoas.
José Antônio Daltoé Cezar é desembargador do TJ-RS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul).
FONTE: CONJUR